Em várias línguas do tronco Macro-Jê, o ouvido (e não a cabeça) é o locus metafórico do pensar. Lingüisticamente, isto se evidencia não apenas no uso de uma mesma raiz verbal para significar 'ouvir' e 'pensar', mas na existência de várias construções metafóricas (por composição ou incorporação nominal) centradas no "ouvir" para se referir a processos cognitivos. Os correlatos etnográficos de tais esquemas lingüísticos são diversos, tornando este assunto um tema fascinante para os estudos das relações entre língua, pensamento e cultura.
Como mencionei em outra ocasião, meu interesse nestas construções é, além de etnolingüístico, histórico-comparativo. É provável que a polissemia 'ouvir/pensar', atestada em itens reconstruíveis para o Proto-Jabutí e o Proto-Jê, já existisse na língua ancestral de ambas as famílias, o Proto-Macro-Jê, especialmente se levarmos em consideração que semelhante polissemia é encontrada também em outras famílias do tronco, como o Boróro, mas parece ser pouco comum em outras famílias ou troncos sul-americanos. É interessante notar que não há qualquer evidência de contato lingüístico entre as famílias Jê e Jabutí, que estão geograficamente muito distantes uma da outra. As possíveis razões para a distribuição de tais "esquemas metafóricos" em línguas do tronco Macro-Jê, assim, não parecem dever-se a fatores areais.1
Embora aparentemente rara, tal situação encontra paralelos em línguas australianas, tal como descritas por Evans & Wilkins (2000).2 Os autores demonstram que "there are good social and cultural reasons driving the extension of 'hearing', but not 'seeing', to 'know' and 'think' in Australian Aboriginal societies", embora não descartem a possibilidade de que a ampla distribuição de tal extensão no território australiano se deva a difusão areal. A própria ubiqüidade de tais práticas culturais e sociais pode muito bem dever-se a difusão areal.
O caso Macro-Jê permite uma análise sob uma perspectiva diferente. Aqui, trata-se de línguas geneticamente relacionadas mas geograficamente distantes, inseridas em diferentes contextos etnográficos. A aparente estabilidade diacrônica de tais esquemas metafóricos em Macro-Jê permite a investigação de sua possível relevância para os estudos de relações genéticas. Embora comumente incluídos na discussão de fenômenos areais (como no caso de "calques" e "loan translations"),3 esquemas metafóricos são raramente considerados como evidências de relacionamento genético — em geral, com razão, já que, dadas suas motivações semânticas, podem desenvolver-se independentemente.4
Pode ser, no entanto, que diferentes esquemas metafóricos, a exemplo de diferentes áreas do léxico, difiram quanto a sua estabilidade diacrônica. A exemplo do que ocorre com o léxico, uma possível explicação talvez resida em considerações de sistematicidade interna: certas áreas do léxico (numerais e termos de parentesco, por exemplo) formam sistemas internamente coerentes, o que os tornam menos suscetíveis a empréstimos e mais estáveis diacronicamente. Se um esquema metafórico é suficientemente relevante a ponto de servir de base para um número significativo de construções relativas a uma inteira área semântica, como "cognição", suas chances de manutenção diacrônica seriam significativamente maiores. As línguas do tronco Macro-Jê oferecem uma excelente oportunidade para a investigação desta hipótese.
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