Sobre o cipó kupá

Como o estudo das origens de uma planta domesticada pode fornecer pistas sobre a localização original de ancestrais de povos Jê atuais

Em lingüística histórico-comparativa, uma perspectiva interessante é a possibilidade de a etnobotânica e ciências afins nos fornecerem elementos auxiliares para a datação e localização de proto-línguas, entre outras informações. O caso do milho é um exemplo: se palavras para 'milho' podem ser reconstruídas para, por exemplo, o Proto-Arawák e o Proto-Karíb, como parece ser o caso, e se a entrada do milho nas terras baixas na América do Sul pode ser datada, isto ajuda a ter-se uma idéia da profundidade temporal destas famílias.

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Foto do cipó kupá (apud Kerr 1987). O kupá é parte importante da agricultura da maioria dos povos Jê do Norte.

O exemplo que apresento a seguir, de uma planta comestível cultivada pelos Jê, pode vir a ser igualmente interessante. Trata-se do cipó kupá, planta domesticada cujo uso parece restringir-se1 a tribos da família lingüística Jê — a saber, Timbíra, Apinajé, Kaiapó e Suyá/Tapayúna2 (Jê do Norte) e Xerénte (Jê Central). Caso (1) o termo para kupá seja reconstruível para o Proto-Jê ou — o que é mais provável — para algum estado intermediário (Proto Jê Setentrional? Proto-Jê Amazônico?) e (2) haja a possibilidade de se determinar uma provável região de origem para o seu cultivo, isto forneceria pistas interessantes quanto à localização original dos falantes da proto-língua.

Descrição do kupá

Warwick Kerr, na Suma Etnológica Brasileira (vol. 1, Etnobiologia, 1987), oferece a seguinte descrição do cipó kupá:

[p. 169] "Cupá (Cissus gongylodes Burch, ex-Baker). O cupá é um cipó da família Vitaceae que deve ter sido domesticado há no máximo 1.000 anos, uma vez que é conhecido por muito poucas tribos (Kayapó, Xerente e Timbíra). Nimuendaju (1946), primeiro antropólogo a descrevê-lo entre os Timbíra, bem como Arnaud (1976), acreditam que se trata de uma planta tradicional dos grupos Jê setentrionais. A variedade selvagem alcança no máximo 1cm de diâmetro enquanto que a melhorada pelos índios chega a ter 8cm. É uma verdadeira mandioca arbórea, plantada igualmente por meio de manivas (Kerr et alii 1978). Os Kayapó cultivam três variedades: o cupá branco (cupá jaca) que é o mais grosso ( fig. 9), o amarelo (kupá ngrâ ñicá) e o de casca vermelha (kupá kamrek). Enterram a maniva verticalmente numa extensão de 20cm, deixando outro tanto para fora, geralmente encostado numa árvore. [p.170] Consomem-no assado ou cozido, mas somente os velhos, porque os jovens crêem que ficariam com a pele enrugada como a casca do cupá. Esta compreende 35% do tubérculo que tem gosto de macaxeira. A umidade do âmago (parte comestível) é de 73% a 77%. Contém 1,2% de proteína, 18% de carbohidratos e 1% de gordura. […] Cupá significa matar, em língua Kayapó. Os índios afirmam que o cupá mata as árvores sobre as quais sobe, uma vez que produz uma folhagem espessa que as cobre por inteiro. Ao derrubarem uma roça deixam alguns pés junto aos quais plantam o cupá."

Nimuendaju e o kupá

A primeira menção ao kupá ocorre na Memoria sobre as nações gentias que presentemente habitam o Continente do Maranhão, escrita por Francisco de Paula Ribeiro em 1819:

"Usam comer tambem uma raiz ou sipó, a que chamam cupá, bastantemente carnosa, porêm falta de sabor que excita a appetencia."

Uma descrição do cipó e seu uso é fornecida por Nimuendajú em artigo de 1940. Para uma descrição ainda mais recente, vide Kerr, Posey & Wolter Filho 1978.


Curt Nimuendaju é provavelmente o autor que mais enfatiza a importância cultural do kupá entre vários povos Jê. Eis o que ele diz, em The Eastern Timbira (1946, p. 59):

"Ethnographically, however, the kupá is the most important of Timbira cultivated species. This creeper ( Cissus sp.) has starchy tendrils, which attain the thickness of an inch and are baked in earth ovens. It does not occur wild;3 is restricted, so far as my information goes, to the Eastern and Western Timbira and the Šerénte, all of them Gê tribes; and is pronouncedly xerophil. Accordingly, it is probably a very old cultivated species peculiar to these tribes, which could not have borrowed it from either Neobrazilians or any of their present Indian neighbors."

"Normalmente, um centro de domesticação pode ser identificado a partir dos próprios vestígios paleobotânicos encontrados nos sítios arqueológicos ou de estudos botânicos indicando a ocorrência, em áreas específicas, de espécies selvagens que tenham parentesco com as espécies domesticadas." (Neves, Eduardo Góes. 2006. Arqueologia da Amazônia, p. 35. Rio de Janeiro: Zahar)

O que fica claro nas citações de Nimuendaju é o quanto este cipó parece ser importante na agricultura [de pelo menos grande parte] dos Jê do Norte (e pelo menos parte dos Jê Centrais). Além dos Timbíra propriamente ditos (ou seja, os "Timbira Orientais" de Nimuendaju), dos Xerénte e dos Kaiapó, o kupá parece ter ocorrido também entre os Apinajé ("Timbira Ocidentais"), se bem que seu plantio estaria aparentemente em desuso já então (Os Apinajé, 1983, p.69):

"A antiga e típica planta de cultivo dos Timbíra, Kayapó e Xerénte, a kupá (Cissus sp.), hoje só excepcionalmente é cultivada."

A estimativa de Kerr ("deve ter sido domesticado há no máximo 1.000 anos") seria razoavelmente consistente com as estimativas de Urban quanto à separação entre Jê Central e do Norte (Greg Urban, 'A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas'. In História dos Índios no Brasil (org. por Manuela Carneiro da Cunha, 1998. 2a. edição, p. 87-102).

Reconstruindo a proto-palavra

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Homem Kaiapó com muda do cipó kupá (Foto: Fábio Freitas/Cenargen)

A importância cultural do kupá é ilustrada pelo fato de que, recentemente, os Kaiapó da aldeia Capoto solicitaram a ajuda de pesquisadores da Embrapa para a reintrodução de seu cultivo, perdido devido a migrações. [Clique aqui para ler panfleto informativo produzido em 2008 pelo Cenargem/Embrapa, Cipó kupá: a recuperação de um alimento tradicional para os índios Kayapó.]

As palavras que designam o kupá nas línguas Jê Setentrionais em questão são claramente cognatas (Timbíra, Apinajé, Kaiapó kupá, Suyá kuhwa), o que garante sua reconstrução para pelo menos um estado intermediário; caso se encontre também em Panará, o termo seria obviamente reconstruível para o Proto-Jê Setentrional. Infelizmente, faltam-me dados sobre os povos Jê Centrais. Curiosamente, embora a existência do kupá entre os Xerénte seja mencionada em The Eastern Timbira, Nimuendaju não faz nenhuma menção a esta planta na monografia The Šerente. Considerando que a existência de contato entre os Xerénte e Apinajé (e os Timbíra) é algo plenamente documentado, não se pode descartar a possibilidade de que seu uso entre os Xerénte seria um empréstimo cultural, e não uma herança comum. Para resolver esta questão, dados do Xavánte seriam essenciais. Também essenciais seriam informações sobre a possibilidade de existência desta planta entre os Panará (provavelmente, o primeiro grupo Jê Setentrional a ter se separado dos demais).4

As implicações disto para o estudo lingüístico comparativo são interessantes. Se a palavra ocorre, como parece ser o caso, em línguas Jê Centrais e Jê Setentrionais (que, juntas, formam um subgrupo dentro da família Jê, o Jê Amazônico5) seria possivelmente reconstruível para o Proto-Jê Amazônico. E se esta é uma planta restrita aos Jê Setentrionais e Centrais, é possível que tenha sido domesticada exatamente pelos falantes de Proto-Jê Amazônico. Como é geralmente possível datar-se, de maneira aproximada, a domesticação de plantas e determinar-se o provável local de domesticação, isto poderia fornecer subsídios interessantes para a datação e localização dos falantes de Proto-Jê Amazônico.6

Tarefas: checklist

  • obter informações adicionais sobre a distribuição do kupá (tanto das variedades cultivadas, quanto das selvagens) e seu provável local de origem e domesticação
  • investigar qual seria o termo para kupá entre os Xerénte e, principalmente, os Xavánte
  • verificar se o kupá é cultivado também entre os Panará e, em caso afirmativo, qual seria seu nome nesta língua

(Página criada em 16 Sep 2008 20:01. Última edição em 19 May 2012 21:08; comentários e informações adicionais são sempre bem-vindos.)

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